segunda-feira, 4 de abril de 2011

O chão nosso

Às vezes o chão sobe até a cabeça e nos nocauteia, num giro rápido e surpreendente, como cobra dando o bote. Como toda família de imigrantes exóticos que se mudam para cá, meus antepassados sonhavam em viver num país de cobras, animais selvagens, combates ao amanhecer e tudo mais.
Foi assim que acabei sendo criado no Acre, boa parte dessa criação feita por cobras que me encontraram vagando na rua ainda bebê. Pode até causar certa surpresa o fato, porque estamos mais acostumados com a idéia de outros mamíferos fazendo isso, cães, lobos, tigres, e por aí segue a longa lista, mas podem acreditar na sinceridade quando digo que é melhor ser criado por cobras do que morcegos ou baleias, pois geralmente a criança humana, nessas condições, não resiste ao primeiro vôo ou ao primeiro mergulho de meia hora.
O fato é que dentro de cada um de nós está uma pequena parte do cérebro que se desenvolveu há milhões de anos atrás e que temos em comum com os répteis. Não são criaturas tão alienígenas quanto parecem, quem tem cobras como animal de estimação até jura que elas gostam de ganhar um carinho de vez em quando.
Outra coisa que as cobras têm em comum com muitos mamíferos é sua relação com nomes no contexto social. Nesse sentido as cobras são iguais a gatos, você pode chamar de Xaninho, Piscadela ou Rasga-tripas, que o resultado é o mesmo, não adianta chamar que o bicho não vem. Tanto para um quanto para outro, o mais atrai mesmo é comida, de forma que me arriscaria como etólogo amador a dizer que são na verdade a mesma espécie, embora o gato tenha uma propensão ainda maior que a da cobra de te esperar num canto escuro para então pular em cima de você cravando os dentes.
E mais traiçoeiro ainda do que cobras e gatos pode ser o chão. Num momento você está andando muito tranquilo pensando na beleza do dimofirsmo sexual como uma característica evolutiva capaz de inspirar as vidas dos espécimes fazendo-os gerar tratados de filosofia e literatura, numa bela simbiose entre biologia e arte, quando, de repente, você está com a cara grudada no chão, sentindo a poeira entrando pela sua boca indo até a garganta, sentido os óculos se esmagarem, estalando e arrebentando em várias partes, as pequenas pedrinhas rolando e rasgando sua carne, enquanto o sangue, aquele líquido belo e espesso que a natureza nos deu, mistura sua cor sensual à terra amarelenta, formando um barro quente. Tudo muito lento, como um beija-flor batendo asas uma vez por minuto.

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