quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Perdendo

O velho cão está perdendo os dentes. Está chegando o fim de seus dias, já não revira mais o lixo e gasta seus dias esparramado no chão em qualquer canto de sol que possa encontrar neste frio.
Ele sente o fim chegando e reage com dignidade e estoicismo, apenas fechando ocasionalmente os olhos numa tentativa de cochilo diurno. Já não passa mais as noites zanzando pelas ruas em busca do seu bando ou alguma cadela no cio. Mesmo depois de ter perdido um dos testículos numa luta com um pitbull ele ainda insistia na procura das fêmeas e as disputava com aquele olhar de quem já provou o gosto do sangue de um outro rival.
O velho cão já não pede mais comida na hora do churrasco e acostumou-se a sua ração cuidadosamente calculada para necessidades calóricas, ainda que um tanto desleixada no preparo quanto ao gosto. Ele já não late mais para o caminhão do lixo quando passa, limitando-se apenas a erguer o olhar e acompanhar de longe a movimentação dos homens que trabalham.
As crianças da casa já há muito cresceram e abandonaram o hábito diário de brincar com ele e ele já não pode mais correr por muito tempo, um desvio na coluna pressiona um nervo e a dor é inevitável. Nas noites frias os rins também doem e ele gane sofrido enquanto sonha que persegue um coelho gigante.
O velho cão já não persegue mais as galinhas, que agora não precisam mais ficar trancadas no galinheiro e andam soltas pelos fundos da casa. Ele sabe que mais dia, menos dia, o dono da casa irá pegar aquele facão afiado nos fundos, ter ele mesmo o trabalho de correr atrás de uma das penosas, cortar-lhe o pescoço, derramando na grama o sangue vermelho enquanto o corpo do bicho corre desnorteado sem um cérebro a coordenar-lhe. Em seguida ele pegará o corpo, jogará água quente e arrancará com rapidez as penas, depois fatiando e assando os pedaços, jogando ao velho cão os restos depois do almoço. Poupa-se assim a correria inútil e espera-se pelos restos e ossos já temperados pelo ensopado.
O que o velho cão não sabe, no entanto, é que o fim dos seus dias pode estar mais próximo do que ele imagina, e que mais dia menos dia o dono da casa irá de fato pegar aquele facão afiado nos fundos, mas não irá atrás de galinha alguma. Ao invés disso irá chamá-lo para uma conversa, acariciar, dizer que sente muito, que gosta muito dele e que é uma pena que tenha chegado a hora. A cabeça cortada num golpe único, morto como se fosse um cão num poema de Sig Schaitel.

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