sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Imortalidade, esse conceito ultrapassado

Depois de alguma espera, o médico me recebeu. Estava apático como
deveria. Pelo menos era assim que eu via sua cara em meus sonhos, há
anos. E naquele momento, ao sentar naquela cadeira desconfortável,
todas as minhas lembranças pareceram retornar e eu já sabia o que ele
falaria. Eu poderia levantar e sair da sala com toda calma, antes
mesmo dele abrir a boca, antes de pegar a caixa de lenços e me
oferecer, antes que eu percebesse na estante a lombada de um livro
obscuro entre seus anuários de medicina. Mas não havia como argumentar
meu desprezo pelo que chamam destino. Nem poderia falar que achava uma
bobagem essa coisa de déjà vu, pois havia uma bolha de água recém
estourada entre os dedos do meu pé que me passava a sensação de um
pequeno pedaço de plástico dentro da meia. Ou um feijão amassado. O
doutor escrevia alguma coisa, provavelmente o atestado de óbito do
paciente anterior e por um momento eu imaginei que ele percebia minha
presença na sala e me dirigisse a palavra:
— O senhor está morrendo.
— Como assim doutor, mas o senhor nem ao menos viu meus exames, como
pode ser isso? O que é isso, algum tipo de brincadeira?
— Senhor Souza, o senhor está morrendo, aceite sua condição, todos
devemos aceitar, o senhor precisa entender que não é imortal.
— Mas, o Ray Kurzweil e o Aubrey de Grey estão fazendo progressos...
como é que o senhor me fala uma coisa dessas agora? Estou cheio de
planos!
— Senhor Souza, não complique, o senhor sabia muito bem que este
momento chegaria, que uma hora o senhor estaria nesta posição.
— Mas, doutor... quanto tempo ainda tenho?
— Já vejo para o senhor, apenas um minuto!
O médico tira da gaveta uma caixa com uma calculadora e algumas
velhas tabelas plastificadas cheias de equações.
— O senhor está com 37 anos... deixe-me ver ... muito bem... é isso:
eu diria que ainda lhe restam 60 anos, no máximo, sendo muito
otimista!
— Mas o que é isso doutor, está brincando comigo?
— Encare os fatos: o senhor deveria saber que está morrendo desde que nasceu!
— Mas o que é isso, o que é isso!? Quero falar com a administração!

Sou repentinamente ejetado da minha fantasia pela pergunta do médico,
que resolveu me atender:

— Senhor Souza, está me ouvindo? Tudo bem? Que tipo de convênio o senhor tem?

Um comentário:

  1. Hehehehe!! Muito bom (Como eu ja tinha dito)! Legal que vc tenha começado a postar aqui.

    Véras

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