terça-feira, 14 de junho de 2011

Sangue Livre

Na primeira facada o sangue jorrou manhoso, devagar, como quem recebe uma notícia inesperada e vai aos poucos acordando. Foi quando veio a segunda que a lâmina realmente cravou firme na barriga e senti as vísceras se enroscando e revirando, como víboras em festa, trazendo um jorro de sangue liberto que via pela primeira vez o mundo exterior e o saudava com sua vermelhidão escura e forte.
A adrenalina na hora ajuda a amenizar a dor, mas a gente sente do mesmo jeito, dói até tontear. Depois da segunda veio a terceira, a quarta e não sei mais quantas, além da paulada na cabeça que me desacordou de vez.
Era isso então? O fim? Uma nota talvez amanhã no jornal e, quem sabe, uma manchete escandalosa no jornal da tevê enquanto as pessoas almoçam e escorre o sangue da tela? Posso até ler na minha frente aquelas piadinhas típicas de coluna policial “vagabundo ia chupar um sorvete e acabou chupando uma lâmina de punhal paraguaio”. Ou quem sabe aquele outro jornal da tevê que outro dia irrompeu no meio da programação com a notícia bombástica e a apresentadora fazendo mil caretas de reprovação e indignação com o estupro cometido por um político famoso, quando ano passado ajudou a abafar e silenciar um caso ainda mais cabeludo de estupro de menor perpetrado por ninguém menos que um dos filhos do patrão. Ah, essa nossa tevê, e depois dizem que cada um tem o que merece.
Será que é isso? As facadas... talvez, de alguma forma, merecidas, como punição kármica por aquela aula que matei no colégio ou aquela menina cujo coração destruí (ah, ok, aqui foi o contrário, na verdade, mas vamos fazer de conta que foi assim para melhor efeito poético).
Não. Nada disso. Nada de karma. Nada de luzes brancas para eu ir. Nada de vozes sussurrantes. Nada de mil virgens. Nada de fogo e desespero. Nada de nada. Apenas o fim, aquela entidade matemática me aguardando de forma confortável e paciente, a inexistência.
Acordei dez anos depois do coma. Os parentes que eram criança já eram adultos, Claudia Schiffer tinha virado uma desconhecida, Kurt Cobain tina se matado, Bukowski tinha morrido, Allen Ginsberg tinha morrido, William Burroughs também, apenas quatro meses depois de Ginsberg. Só eu é que não.
Ou talvez sim. Porque ninguém que passa por uma tragédia sobrevive realmente a ela. Se não morremos mesmo, saímos sempre mudado, de forma que aquele antigo eu jamais se torna recuperável, para sempre perdido, morto, condenado à inexistência.

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