Há poucas cenas na vida que valem a pena guardar na memória até a morte. Aquela noite, por exemplo, em que você entrou no dormitório feminino e ficou conversando com 20 garotas usando lingerie ou camisolas. Aquela garota sensacional que passou por você na rua e você nunca mais esqueceu o olhar dela. Ou aquela noite que tudo funcionou como devia e você usou truques que ela jamais resistiria: vinho chileno e salada mista, que sempre a faziam rir. Como eu gostava daqueles dias e tentava prender cada minuto e cada imagem na minha memória, cada firme e gigantesca imagem.
Não sei porque, depois daquele dia, uns outros rapazes falavam da beleza das formas dela e deixei escapar aquela frase um tanto piegas, de que ela era feita de mármore. Eu me referia é claro à perfeição de formas como se fossem especialmente esculpidas, mas a versão que acabou correndo de boca em boca e consolidando o apelido fatal cuja autoria me fora injustamente atribuída foi “bunda de mármore”, o que me custou para sempre aquela menina que era tão promissora.
Apenas a imagem ficara, preservada em algum recanto obscuro da memória, por décadas e décadas a fio, esperando que algum dia um evento desencadeasse seu ressurgimento. Uma topada numa pedra, um espirro no ofuscamento do sol ou um momento de devaneio ao banho, não sei ao certo, e lá me veio de novo, tal como se fosse presente imediato, aquela imagem tão bem preservada e por tantos anos ocultas: eu, ela, a tensão, o vinho, a salada mista, os risos.
Tive que me segurar acometido pela vertigem do passado que me tragava e trazia à tona os cheiros, os tons de luzes, as sombras, texturas da pele. Fui tomado por uma enxurrada de memórias de um grande acervo que eu julgava para sempre perdido, ou sequer sabia existirem.
Magnífica máquina de realidade virtual que nosso cérebro se torna e nos permite enganá-lo, vivenciar a posteriori um momento tal qual na ocasião em que o mesmo acontecera, apenas, talvez, um pouco embaçado, com alguma informação ou outra faltando aqui e ali, uma foto antiga que parte já se apagou com o tempo. Traiçoeira habilidade, no entanto, que às vezes nos assalta assim de improviso, gratuitamente, e força-nos goela abaixo a memória que nem sempre é aquela que gostaríamos.
Somos o que pensamos e lembramos, o que nossos neurônios criam ao articular circuitos em sua longa rede elétrica de sinapses, que sempre se impõe, mas de forma gentil, para nos dar a ilusão de controle.
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