As sereias do Discovery Channel e Animal Planet são como
os proverbiais mortos-vivos. Não importa quantas vezes você os mate (ou,
no caso, os desminta), não adianta, eles continuam voltando para te
assombrar.
Após o
pseudo-documentário “Sereias” (“Mermaid:
A body found”) que foi mais uma vez reprisado, em maio deste
ano, foi veiculado, em seguida, um outro programa, desta vez
chamado, “Mermaids:
New Evidence” que traz de volta o 'Doutor Paul
Robertson' (que, na verdade, não existe, sendo apenas um ator) defendendo a existência
das criaturas lendárias que, na versão do AP seriam uma espécie de
hominini adaptada à vida aquática que teria sido inspirada na muito
especulativa e não levada a sério pela comunidade de pesquisa,
'teoria do macaco aquático'. Neste novo programa são apresentadas
'evidências' históricas e novas filmagens inéditas destas
criaturas.
Muitas pessoas, ao
defenderem o programa, usaram a desculpa que os desmentidos e
exposição da natureza ficcional do programa eram apenas um
exercício de prepotência e arrogância, já que estaríamos negando
mesmo a mera possibilidade destes seres existirem, mas esta jamais
foi a questão. O problema é que muitas pessoas estão realmente
acreditando que o programa do AP seja um documentário real, que os
'cientistas', citados nele, realmente existem e que teriam tido seus
trabalhos, e as evidências que eles analisaram nos mesmos,
suprimidas pelos governos de seus países em uma campanha de
acobertamento internacional que só não conseguiu silenciar uma rede
de TV à cabo e um cientista, cujos dados biográfico, profissionais
e a produção acadêmica, teria sido todos apagados do mapa.
Os
artigos que eu (veja "De novo a história das sereias" e "De Dragões à Sereias") e outros escrevemos sobre o tema em nenhuma momento
negam o direito das pessoas acreditarem em lendas e nem ao menos
negam a simples possibilidade lógica de que tais seres existam. Eles
apenas alertam que, como antes do programa do AP, não existem
evidências científicas e rigorosas que endosse a existência de
tais seres vivos (nem como criaturas místicas nem como espécies
desconhecidas pelas ciência de primatas aquáticos), apenas as
anedotas de sempre. É preciso mais que uma mera possibilidade lógica
e anedotas para que a comunidade científica passe a considerar algo
como real ou pelo menos provável , especialmente quando são lendas
e mitos. Esta é a grande questão.
Embora os próprios
responsáveis pelo
Discovery
Channel por meio do news.discovery, reconheça que “Sereias”
não é um documentário real, mas apenas um programa feito 'ao
estilo de um documentário' - devendo ser visto como ficção
científica, ainda que, segundo eles, baseada em alguns fatos reais e
teoria científica real* - , ainda assim, os produtores e
responsáveis por ele usam de linguagem ambígua e deixam de lado os
vários problemas de suas especulações e da teoria pseudocientífica
que usam como base para sua proposta, bem como a total falta de
evidências rigorosas para estes seres. Parece que eles deixam as
coisas assim de propósito para disseminar as interpretações mais
desvairadas possíveis.
O mesmo pode ser visto na
entrevista dada pelo criador/produtor da série, Charlie Foley, ao Mother Nature Network [Veja também o artigo e o vídeo do huffigntonpost] em que ele explica o
novo programa misturando fatos e ficção de maneira ambígua, de
modo a não desfazer as confusões criadas por ele próprio e pelo AP
ao exibir o programa. Não tenho como não enxergar nisso uma certa
irresponsabilidade, sendo mais uma mostra de que o DC e o AP cada vez
mais
se distanciam da educação e divulgação científica de boa qualidade e navegam em direção do puro
entretenimento sensacionalista, como ocorreu com o History
Channel. Confundir telespectadores, fomentar desinformação generalizada e disseminar a ideia de conspirações governamentais e acobertamento de fatos fantásticos não me parece um objetivo digno para um canal de TV, especialmente um de que se esperaria mais seriedade.
A repercussão do
primeiro programa foi tão grande que o NOAA [National Oceanic and Atmospheric Administration], a agência ambiental de
pesquisa que é citada como abrigando os principais 'cientistas'
mostrados no programa, teve que fazer um desmentido em sua página,
enfatizando que não foram descobertas evidências de humanoides
aquáticos. O que, na realidade, só fez por reforçar as crenças de
muitos leigos, inclinados à teorias conspiratórias, pois 'já que o
governo negou, então, deve ter alguma coisa ali'. É claro que se o
governo (na figura do NOAA que, aliás, foi solicitado por vários
e-mails de cidadãos a esclarecer a questão) nada tivesse dito, o
silêncio desta instituição também seria usado como evidência de
que as sereias existem ou de que exista algo a mais por trás desta
história. Com uma mentalidade assim não tem como vencer.
Os produtores do programa chegaram a criar uma página, believeinmermaids.com, supostamente, do 'Doutor Robertson', na qual ele exporia as
'evidências' das sereias, mas que, convenientemente, teria sido bloqueada pelo FBI. O que foi só mais uma jogada de marketing, brilhante, por sinal,
já que, além de sustentar a ideia de que o governo dos EUA (e não
só ele, já que no programa original, 'pesquisadores' de várias
partes do mundo analisam as 'evidências' e atestam sua 'veracidade')
estar abafando o caso, ao bloquear a página, os produtores impedem que as pessoas
fossem mais fundo na questão e analisem as supostas informações e
evidências, fazendo perguntas ao seu dono que poderiam expor a inconsistência da história, como por exemplo, a questionar-se onde estão os artigos sobre as análises das evidências, ou por que
não encontramos nenhum dos 'cientistas' citados e mostrados no
programa nas páginas das universidades e institutos de pesquisa nos
quais eles deveriam trabalhar, de acordo com o próprio programa, e nem nas bases de periódicos. Aliás, com uma conspiração dessa magnitude, que apaga do mapa pessoas de diversos países e suas carreiras, deveríamos realmente esperar que o AP conseguisse burlar todo o processo de abafamento e veicular vários programas sobre o assunto?
A própria forma como
eles apresentam os supostos hominines aquáticos é bizarra. Por
exemplo, as criaturas mantém feições tremendamente humanas, mesmo
tendo divergido de nossa linhagem, de acordo com o programa, milhões
de anos atrás antes mesmo da divergência da nossa linhagem da dos
ancestrais dos Chimpanzés e Bonobos, em um incrível caso de convergência evolutiva mesmo que tenha ocorrido em ambientes completamente diferentes. Este pequeno lapso faz todo
sentido do ponto de vista ficcional já que foi feito, obviamente,
para manter a identificação dos telespectadores com a criatura e
não desviar demais da visão puramente mítica destes seres.
O
problema é que ao adotarmos uma perspectiva comparativa mais rigorosa seria
muito estranho que estes animais mantivessem, por exemplo, narinas
frontais e uma cabeça tipica da postura ereta, isto é com a coluna
vertebral e a posição do forame, onde ela se insere, muito semelhante a nossa e não aos outros primatas e menos ainda aos outros mamíferos aquáticos, o que não parece
nem filogeneticamente
correto e nem hidrodinamicamente apropriado. Por
exemplo, em outros mamíferos marinhos, que se adaptaram a vida
eminentemente aquática (em contraste com animais que adotam uma vida
mais anfíbia, como castores, lontras etc), como as focas e
sirenídeos (como os manatins), as narinas ficam mais para o topo do
rostro e em cetáceos, como baleias e golfinhos, elas se fundiram e
deslocaram-se bem para cima na cabeça, atrás dos olhos, como fica
claro ao observarmos os orifícios respiratórios destes animais.
Outro problema é a
distribuição da gordura nestas supostas criaturas, o que é uma
questão importante em mamíferos aquáticos, sobretudo para aqueles
que perderam os pelos, como os cetáceos, por causa da perda de calor
acentuada que ocorre na água, especialmente em águas mais frias. As
sereias do AP são simplesmente muito magrinhas e pouco roliças.
Além do que possuem aqueles braços compridos e finos, bem humanos,
que seriam outra fonte de perda de calor enorme. Em contraste,
mamíferos aquáticos como sirenídeos, pinipédios e cetáceos, todos,
tiveram seus membros dianteiros evoluídos em nadadeiras, evoluindo
também estratégias bem específicas, como mecanismos
contracorrentes trocadores de calor, para minimizar a perda de calor
por estas superfícies maiores. Embora, forçando um pouco a barra, poderiam ser arranjadas explicações adaptativas ad hoc para estas
diferenças (ou os autores, simplesmente, poderiam apelar para a contingência nos processos
evolutivos ou a falta de tempo do mesmo), ainda assim, estas questões mostram como foi superficial
o tratamento dado pelo programa à biologia destas criaturas
imaginárias, o que desmonta a impressão que muitos leigos tiveram
de que era tudo muito coerente e consistente. Não era. Algo compreensível em um exercício de ficção, mas não em um documentário verídico que se propõem ser a única exposição das supostas evidências remanescentes daquilo que certamente seria a maior descoberta do século.
O pior de tudo isso é
que, caso os produtores e a emissora fossem mais sérios e
responsáveis, tendo apresentado o programa como claramente ficcional
(a invés do silêncio e da ambiguidade nos desmentidos nos créditos, ao final do
programa) e deixado claro que era apenas um 'What if?', as
coisas poderiam ter sido muito mais interessantes. Por exemplo, eles
poderiam ter incluído, ao final da exibição em um programa separado ou mesmo ao final do
programa, cientistas reais, especialistas em mamíferos aquáticos e
em sua evolução (não envolvidos com a produção do programa), bem
como antropólogos e primatologistas, para comentar as limitações,
problemas e, mesmo, os acertos da perspectiva adotada pelo AP de como
seriam as sereias caso elas existissem mesmo como animais reais e não
como seres místicos e sobrenaturais. Caso tivessem feito isso, o
programa seria muito mais informativo, útil e divertido.
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*O
que ainda é um certo
exagero, pois os eventos reais são o 'bloop', os encalhamentos de
baleias, que são suspeitos de terem sido causados por sonares da marinha e a
existência e evolução de mamíferos aquáticos, e a dita teoria
científica real que embasaria esta ficção é a 'hipótese do macaco aquático' que, como já disse, é
uma ideia especulativa que, simplesmente, não é levada a sério por boa parte da
comunidade de paleoantropólogos e biólogos evolutivos que estudam a
evolução humana. Isto é, as coisas que são reais são muito diferentes da maneira como são apresentadas no programa e a 'teoria científica' que eles alegam usarem como base é uma especulação vista como pseudocientífica por boa parte da comunidade científica em áreas relevantes.
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- Hibberd, James 'Mermaid hoax drowns Animal Planet's ratings record' InsideTV May 28 2013.
- Schiavo, Amanda 'Are Mermaids Real? Animal Planet Documentary Reveals 'New Evidence,' But Experts Say No' The LA Times May 28, 2013.
- Reidenberg JS. Anatomical adaptations of aquatic mammals. Anat Rec (Hoboken. 2007 Jun;290(6):507-13. PubMed PMID: 17516440.[pdf][Veja também a edição especial neste volume sobre o tema: “Special Issue: Anatomical Adaptations of Aquatic Mammals”]
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